Não sei que idade tenho. Estou sentado na mesa da tua cozinha, onde tantas vezes brincámos os três (brincadeiras que deram histórias que nunca te cansaste de contar) e tu estás a meu lado. À nossa frente um caderno, daqueles que nunca mais vi, onde crianças como eu (ou crianças que tiveram a sorte que eu sempre soube ter) aprenderam a escrever. Dizes-me "começas à esquerda, assim, desenhas a primeira curva que toca na linha do meio, depois sobes até à segunda linha, desces até à direita, e voltas a fazer uma curva" enquanto os meus olhos seguem o lápis afiado por um canivete que desenha um "a" maiúsculo. A seguir é a minha vez, seguras-me na mão e lentamente lá me ajudas a desenhar a primeira letra. Sinto-me importante: ainda não estou na escola e já sei escrever. Devo-te isso a ti.
Não sei que idade tenho. Estamos numa manhã de Verão, na praia, a brincar junto às rochas. O meu irmão está dentro de água, a nadar, a mergulhar. Eu estou junto a ti, a tentar arrancar com as unhas lapas que teimam em se colar à pedra quando lhes toco. O meu avô está lá ao longe a arrancar mexilhões para almoçarmos. À nossa volta, poucas pessoas. Decido subir um pouco mais na rocha, para agarrar o caranguejo que subiu. Escorrego. Rasgo a pele, e o sangro. Mais uma visita ao posto médico (será uma de entre tantas, que me levaram mesmo a casa da enfermeira). Ainda hoje tenho marcas na pele. São marcas de uma infância feliz, livre, plena de Verão, praia, e amor. Devo-te isso a ti.
Não sei que idade tenho. Estou de volta a tua casa, depois do avô me ter ido buscar à escola. Achei estranho, afinal naquele ano eu já ía sozinho para casa. Sabia subir pelo Barreiro velho, passar a correr pelo jardim da velha que nós pensávamos ser maluca, cruzar o parque e chegar a casa. Naquele dia levaram-me para a tua sala. A minha outra avó tinha morrido. Ela dava-me chá e torradas, e comíamos numa cozinha antiga, completamente aberta para a sala. Aí ela chorava, ao meu lado, lembrando-se do meu outro avô que morreu tinha eu 3 anos. É dele a primeira recordação que tenho: a minha mãe, na cozinha, a dizer-me: "Leva o teu avô à porta" e eu lá fui, olhando para cima, vendo aquela figura da qual não tenho mais nenhuma recordação (por vezes, e não sou poucas as vezes - talvez não devesse pensar tanto no passado, temo que seja uma recordação construída por mim. Quero acreditar que não.) Naquele dia levaram-me para a tua sala. A minha outra avó tinha morrido. Lembro-me da minha mãe se sentar a meu lado, abraçar-me, e de tu chegares e fazeres o mesmo. Senti-me seguro. Devo-te isso a ti.
Tenho 24 anos. Terminei o curso. Telefono-te a dar a notícia. Sinto as lágrimas cairem-te pela cara. Tinhas em mim sonhos e expectativas e, naquele momento, quando te disse, senti que tinha estado à altura do que desejavas. Nesse dia, celebrámos, e as tuas lágrimas trouxeram-me um conforto inexplicável. Devo-te isso a ti.
Hoje, foges-me. Começas a não saber onde estás, onde estamos, o que se passa. Somos obrigados a despedir-nos lentamente, de uma maneira que ninguém sabe como lidar. Já fazes frases sem nexo, crente de que estás na posse de toda a lógica. Não sei o que te responder. Faço força para que as lágrimas não me caiam. Mas agora, sozinho, volto a chorar como não chorava há largos meses. Sou obrigado a despedir-me, aos poucos, de ti, e não quero. Não posso fazer nada, mas simplesmente não quero... e não sei...
Não sei que idade tenho. Estamos numa manhã de Verão, na praia, a brincar junto às rochas. O meu irmão está dentro de água, a nadar, a mergulhar. Eu estou junto a ti, a tentar arrancar com as unhas lapas que teimam em se colar à pedra quando lhes toco. O meu avô está lá ao longe a arrancar mexilhões para almoçarmos. À nossa volta, poucas pessoas. Decido subir um pouco mais na rocha, para agarrar o caranguejo que subiu. Escorrego. Rasgo a pele, e o sangro. Mais uma visita ao posto médico (será uma de entre tantas, que me levaram mesmo a casa da enfermeira). Ainda hoje tenho marcas na pele. São marcas de uma infância feliz, livre, plena de Verão, praia, e amor. Devo-te isso a ti.
Não sei que idade tenho. Estou de volta a tua casa, depois do avô me ter ido buscar à escola. Achei estranho, afinal naquele ano eu já ía sozinho para casa. Sabia subir pelo Barreiro velho, passar a correr pelo jardim da velha que nós pensávamos ser maluca, cruzar o parque e chegar a casa. Naquele dia levaram-me para a tua sala. A minha outra avó tinha morrido. Ela dava-me chá e torradas, e comíamos numa cozinha antiga, completamente aberta para a sala. Aí ela chorava, ao meu lado, lembrando-se do meu outro avô que morreu tinha eu 3 anos. É dele a primeira recordação que tenho: a minha mãe, na cozinha, a dizer-me: "Leva o teu avô à porta" e eu lá fui, olhando para cima, vendo aquela figura da qual não tenho mais nenhuma recordação (por vezes, e não sou poucas as vezes - talvez não devesse pensar tanto no passado, temo que seja uma recordação construída por mim. Quero acreditar que não.) Naquele dia levaram-me para a tua sala. A minha outra avó tinha morrido. Lembro-me da minha mãe se sentar a meu lado, abraçar-me, e de tu chegares e fazeres o mesmo. Senti-me seguro. Devo-te isso a ti.
Tenho 24 anos. Terminei o curso. Telefono-te a dar a notícia. Sinto as lágrimas cairem-te pela cara. Tinhas em mim sonhos e expectativas e, naquele momento, quando te disse, senti que tinha estado à altura do que desejavas. Nesse dia, celebrámos, e as tuas lágrimas trouxeram-me um conforto inexplicável. Devo-te isso a ti.
Hoje, foges-me. Começas a não saber onde estás, onde estamos, o que se passa. Somos obrigados a despedir-nos lentamente, de uma maneira que ninguém sabe como lidar. Já fazes frases sem nexo, crente de que estás na posse de toda a lógica. Não sei o que te responder. Faço força para que as lágrimas não me caiam. Mas agora, sozinho, volto a chorar como não chorava há largos meses. Sou obrigado a despedir-me, aos poucos, de ti, e não quero. Não posso fazer nada, mas simplesmente não quero... e não sei...
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